João Pereira

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imagem: Tiago Moura

“João Pereira”, por Nuno Leão

Enquanto escrevo este texto, há algures numa galáxia mais ou menos distante, um movimento interestelar que, daqui a uns anos, resultará numa supernova. Enquanto isso, o degelo no ártico continua, nesse local perto do vazio inicial, em que a massa parece ainda não ter encontrado forma fixa, permanecendo num movimento contínuo tão lento que se torna quase imperceptível. Daqui a uns anos acontecerá, de novo, o próximo eclipse solar, e os homens perceberão que a visão é um sentido que ainda não conseguiram dominar.

“Não há nada que se vá sobrepor à natureza. Não há nada/ que se vá/ sobrepor/ à natureza.” – repete-se a frase que o sr. João, habitante de Castelo Branco e apaixonado pelo estudo dos povos, articula minuciosamente e esta surge como mantra crescente em forma de profecia. João é um desses homens que não têm tempo nem lugar, precisamente por co-habitarem, ao mesmo tempo, todos os tempos e todos os lugares. Poderíamos chamar-lhe um “nómada”, como Deleuze os concebeu, precisamente porque parece nunca ter saído do lugar onde sempre esteve. Simples aparência, aparente imobilidade, é nos livros, nas cassetes, nos filmes… que encontra a viagem, arte da fuga. Diz já ter estado nos cinco cantos do mundo e ter até realizado a descida ao subsolo, onde se escondem antepassados e o magma vulcânico continua em potente ebulição. Colecionador compulsivo, diz-se também melómano, encontrando nos sons o encanto e a vertigem; uma voz tão próxima capaz de se tornar no seu próprio corpo e tão distante que se torna no seu ouvido anterior. Ao sr. João murmuram-lhe os vestígios por onde quer que passe e o seu eco é transportado pela eterna mulher dos homens, aquela que foi mãe e deusa (mnemósine): a memória. Esta é, para João, a mãe do futuro, aquela que o “dá à luz” e é também ela que, ao mesmo tempo, estende a mão para amparar o presente e lhe dar um sentido qualquer que chega de trás. Do que já foi e volta a ser, mesmo que transmudado. Sempre transmudado.

No leitor de fitas áudio, João escuta uma canção sul-americana e pensa nos primeiros índios. A música fala de amor e de pobreza e João erra por aí à procura de uma mulher para amar. A fita gira para a frente, mas João caminha às arrecuas. É vertiginoso este movimento e apenas possível aos que dominam a arte do (des)equilíbrio. Pelas suas contas devemos estar algures no ano quinto antes de Cristo ou, “se a memória não (lhe) falha”, diz, no início do terceiro milénio. João já testemunhou mais de três mil e uma supernovas e a luz da sua expansão encontra-a nas rodas do folclore do mundo, nas vozes de cantigas de trabalho e de sedução, nos galanteios de um cavaleiro perdido em busca de uma donzela que precise de proteção. Gosta da lenda, do mito e do mistério, mas gostava ainda mais de os poder tornar “cenários”, diz a desejá-los matéria pronta a modelar e a poder reconstruir a seu bel prazer; artesão popular.

O tempo tem um rastilho, do qual, aqui e ali, se consegue encontrar o rasto, mas dificilmente se conseguirá finalmente encontrar a fabulosa magia da dinamite. Nada a fazer neste jogo do gato e do rato a que naturalmente acedemos. Ser gato e ser rato é talvez a única hipótese que nos resta e, no meio dela, ir procurando prever o maravilhoso instante em que a próxima supernova irá novamente acontecer.

Filosofia da Paisagem | João Pereira
Castelo Branco, 11 de março de 2015

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